Florestas saudáveis, pratos cheios: estudo revela como a Amazônia garante o acesso dos povos amazônicos à carne de animais silvestres
- Patrick Araujo

- há 5 dias
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Pesquisa publicada na Nature mostra que a manutenção da floresta garante acesso à carne de animais silvestres, essencial para a nutrição e cultura de milhões de amazônidas — e alerta para o impacto devastador do desmatamento

A preservação das florestas amazônicas não é apenas uma questão ambiental: é também uma garantia direta de segurança alimentar, cultural e econômica para milhões de pessoas. Um estudo inédito divulgado na revista Nature, com participação de pesquisadores do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), revela que florestas saudáveis asseguram aos povos da região o acesso à carne de animais silvestres — um pilar dos sistemas alimentares tradicionais.
A pesquisa analisou quase seis décadas de dados e mostrou que, embora a Amazônia abrigue uma diversidade impressionante de 490 espécies consumidas, apenas 20 grupos representam 72% dos animais caçados, com destaque para queixadas, antas e pacas — esta última, a espécie mais caçada do bioma.
Os pesquisadores também estimaram que a carne de mamíferos, aves, répteis e anfíbios caçados supre quase metade das necessidades diárias de proteína e ferro dos 11 milhões de habitantes das áreas rurais amazônicas, além de fornecer vitaminas do complexo B e zinco.
Mas a derrubada da floresta ameaça esse cenário. Em áreas com mais de 70% de desmatamento, houve uma redução de 67% na quantidade de animais e na produtividade da carne. Nessas regiões degradadas, espécies generalistas — como tatus, capivaras e pombas — dominam a caça, sobretudo perto de centros urbanos.
Caça tradicional é conhecimento ancestral

O ecólogo André Antunes, primeiro autor do artigo e integrante da RedeFauna, destaca que a caça na Amazônia é uma prática profundamente cultural.“Proteger a Amazônia é vital não apenas para conservar a biodiversidade, mas para garantir a saúde, o bem-estar, a segurança alimentar e nutricional, a soberania e a continuidade dos modos de vida de milhões de habitantes rurais”, afirma.
O trabalho foi assinado por 59 pesquisadores, incluindo cientistas indígenas de dez povos — Surui, Paumari, Katukina, Baniwa, Waurá, Apurinã, Tikuna, Kaxinawá, Kuikuro e Kaixana — além de extrativistas.
Segundo o estudo, mais de 2 milhões de caçadores indígenas e tradicionais dependem da caça, pesca, agricultura itinerante e criação de animais domésticos. Das 490 espécies consumidas, são 175 mamíferos, 264 aves, 40 répteis e 11 anfíbios, reunidos em 174 táxons — cerca de 10% de todos os tetrápodes amazônicos.
Os autores ressaltam que retirar ou proibir a carne silvestre sem levar em conta este contexto seria uma visão colonialista, prejudicial aos direitos e à autonomia dos povos amazônicos. Para eles, o manejo sustentável é o caminho que equilibra conservação e cultura.
Conhecimento intercultural que fortalece a ciência
O banco de dados Marupiara — “caçador bom ou virtuoso”, em Tupi — reuniu informações produzidas por pesquisadores indígenas e não indígenas que acompanharam práticas de caça em 342 comunidades de Brasil, Peru e Guiana. Outros 203 trabalhos científicos complementaram o conjunto, totalizando 447.438 registros de caças individuais em 625 localidades.

A pesquisa recebeu apoio da COIAB e do Conselho Nacional das Populações Extrativistas, o que reforçou a legitimidade dos resultados.
Para o líder indígena Dzoodzo Baniwa, coautor do artigo, essa participação representa um marco.“É um processo de reparação histórica que reconhece e valoriza o protagonismo indígena, garantindo sua presença ativa e colaborativa nas etapas do desenvolvimento da pesquisa científica”, afirma.
Ele ressalta ainda a importância de integrar ciência acadêmica e saberes tradicionais:“A riqueza, não só cultural, mas a riqueza de saberes, do conhecimento, está na diversidade de povos brasileiros, dos ecossistemas, dos territórios também, e essa riqueza do conhecimento precisa ser colocada como pauta, como avanço científico também”.
Carne silvestre não tem substituto simples
A substituição da carne de caça por proteína de animais domésticos — como bovinos ou frangos — traria impacto ambiental e nutricional expressivo. Segundo o estudo, produzir a mesma quantidade de carne exigiria converter até 64 mil km² de floresta em pastagem, liberando 1,16 bilhão de toneladas de CO₂, o equivalente a 3% das emissões globais anuais.
Além disso, carnes industriais oferecem níveis menores de ferro, zinco e vitaminas essenciais, o que poderia agravar deficiências nutricionais nas populações rurais amazônicas.

A pesquisa conclui que a “riqueza invisível” da fauna amazônica — capaz de gerar mais de meio milhão de toneladas de biomassa por ano, equivalente a US$ 2,2 bilhões em valor econômico — só continuará sustentando os povos da floresta enquanto a Amazônia permanecer de pé.








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